Uma galáxia gorda, velha e decadente que parece ter tomado emprestado gás de suas vizinhas para voltar a fabricar estrelas está ajudando um grupo de astrônomos a decifrar os mistérios dos aglomerados de galáxias, os tijolos formadores das maiores estruturas do Universo.
© NASA/ESA (NGC 1275 no aglomerado de Perseu)
Com a forma de uma esfera achatada, a galáxia se localiza na direção da constelação de Perseu, o mitológico herói grego que decapitou a Medusa, e é imensa: abriga de 10 a 100 vezes mais matéria do que a nossa galáxia, a Via Láctea, formada por cerca de 200 bilhões de estrelas, e mantém outras aprisionadas gravitacionalmente ao seu redor. Conhecido como aglomerado de Perseu, esse grupo de galáxias tem uma característica marcante que há tempos intriga quem o estuda: é permeado por uma gigantesca nuvem de gás muito rarefeito e quente, com algumas regiões apresentando temperaturas bem mais elevadas do que seria de esperar.
As leis da física preveem que, à medida que o gás das galáxias vizinhas é atraído pela gravidade rumo à galáxia central, no caso, a NGC 1275, distante 235 milhões de anos-luz da Terra, sua densidade deve aumentar enquanto sua temperatura diminui acentuadamente. “Como o gás se torna mais denso próximo ao centro do aglomerado, as partículas que o formam colidem mais facilmente umas com as outras e perdem energia na forma de radiação”, explica a astrofísica Elisabete de Gouveia Dal Pino, que vem estudando o aglomerado de Perseu nos últimos anos. Assim, quanto maior a densidade e a proximidade da galáxia central, mais frio deve se tornar o gás. Isso, no entanto, não é bem o que acontece com Perseu.
A temperatura do gás do aglomerado até diminui, é verdade. Mas não tanto quanto, nem como deveria. Medições feitas por telescópios em terra e no espaço revelaram que ela passa de quase 10 milhões de graus nas regiões mais distantes da NGC 1275 para cerca de 3 milhões de graus por volta da metade do caminho. E depois se estabiliza, quando o esperado era que baixasse para algumas centenas de milhares de graus. Esse efeito só se justificaria se algo estivesse reaquecendo o gás na região mais central do aglomerado, equilibrando a perda de calor.
Há algum tempo os pesquisadores até têm um candidato: um gigantesco buraco negro, com massa equivalente à de centenas de milhões de estrelas como o Sol, situado bem no centro da NGC 1275. Os buracos negros são objetos tão densos e compactos que impedem que qualquer coisa escape de sua superfície, inclusive a luz. Mas na sua vizinhança é liberada muita energia. Antes de ser sugada e absorvida, a matéria que espirala ao redor do buraco negro é acelerada pela gravidade. Parte dela, auxiliada por campos magnéticos, escapa em dois feixes estreitos que saem dos polos do buraco negro, originando os jatos de partículas que se deslocam a velocidades próximas à da luz. Esses jatos emitem ondas de rádio que são detectadas pelos astrônomos.
Imagens feitas a partir de outra forma de radiação, os raios X, mostravam que as proximidades do buraco negro da NGC 1275, região do espaço também conhecida como núcleo galáctico ativo por emitir mais energia do que o restante da galáxia, liberavam energia suficiente para manter o gás aquecido na porção mais central do aglomerado. Mas havia um mistério: como as temperaturas do gás podiam ser mais ou menos homogêneas, se os jatos de radiação gerados a partir do buraco negro eram tão estreitos?
Ao conduzir simulações em computador, o grupo coordenado por Elisabete Dal Pino e Zulema Abraham, pesquisadoras do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), na capital paulista, encontrou uma possível resposta. “As temperaturas poderiam ser as observadas, caso o núcleo galáctico ativo estivesse em precessão (mudança de inclinação no eixo de rotação)”, afirma Elisabete. A ideia pode ser traduzida assim: para manter a temperatura aproximadamente homogênea, é preciso que o eixo de rotação do objeto central varie de inclinação e os jatos oscilem distribuindo melhor a energia. Ou, de modo mais simples, isso pode acontecer se o buraco negro bambolear como um pião que perde velocidade.
As simulações realizadas por Diego Falceta-Gonçalves, da Universidade Cruzeiro do Sul (Unicsul), em São Paulo, produziram resultados similares aos observados na natureza quando o ângulo de variação do eixo era grande: 60 graus. No artigo do Astrophysical Journal Letters em que apresentaram os resultados no início de 2010, os pesquisadores explicam: como os jatos oscilam com o tempo, a energia liberada é aproximadamente igual em todas as direções. Mas essa pode não ser a única explicação.
Em meados de 2008, Elisabete Dal Pino visitava a Universidade de Wisconsin em Madison, nos Estados Unidos, quando o astrônomo americano John Gallagher mostrou a ela um resultado que havia acabado de obter e nem sequer havia publicado. Gallagher e seu grupo tinham feito medições dos filamentos de gás que existem ao redor da NGC 1275. “Ele ficou intrigado porque eles obtiveram mapas das velocidades dos filamentos e perceberam que alguns deles estavam se afastando da galáxia, e não se aproximando, como seria o esperado”, conta a astrofísica.
O resultado, publicado no ano seguinte na Nature, era uma medição inesperada. Indicava que alguma força estava contrabalançando a gravidade e empurrando o gás para fora da NGC 1275. Além disso, forças magnéticas faziam os filamentos arquear. Era pouco provável que o núcleo galáctico ativo, por mais poderoso que fosse, estivesse produzindo o fenômeno sozinho. O que estaria acontecendo?
“Foi aí que eu tive a ideia das supernovas”, diz a pesquisadora brasileira. Supernova é o nome que se dá a uma estrela com massa muito elevada que consumiu todo o seu combustível e explodiu. É um dos eventos mais energéticos do Universo. Uma série de supernovas poderia explicar o formato dos filamentos ao redor da galáxia central do aglomerado. O único problema é que supernovas recentes implicam formação estelar recente. E uma galáxia como a NGC 1275 não tem mais matéria-prima para fabricar estrelas com massa elevada.
Em outra série de simulações, dessa vez em parceria com John Gallagher e Alex Lazarian, ambos de Wisconsin, Falceta-Gonçalves e Elisabete mostraram que o gás em queda proveniente das galáxias vizinhas poderia produzir uma onda de choque na superfície da NGC 1275 e gerar um súbito episódio de formação estelar. Estrelas com muita massa queimam seu combustível mais rapidamente do que astros menores como o Sol, que precisam de bilhões de anos para esgotá-lo. Por isso, poderia haver uma onda de explosões de supernovas uns poucos milhões de anos após o processo de formação estelar.
Com auxílio de computadores, os pesquisadores reproduziram o que acontecia 120 milhões de anos, após o nascimento das estrelas. O trabalho, também publicado no Astrophysical Journal Letters, indicou que a interação da radiação emitida pelo núcleo galáctico ativo com as turbulências geradas pelas supernovas produz um padrão de filamentos muito parecido com o observado ao redor da NGC 1275. “Cada simulação, em resolução máxima, de 100 milhões de pixels, demora cerca de 20 dias para ser completada”, conta Falceta-Gonçalves, que conduziu a maior parte dos testes e é o primeiro autor dos artigos.
Esses trabalhos apresentam, sem dúvida, explicações plausíveis para os mistérios da NGC 1275. Mas como saber qual é a real causa da distribuição homogênea de temperatura do gás e dos filamentos observados ao redor da galáxia? Uma das formas de comprovar essas explicações seria procurar, com o auxílio de telescópios, sinais deixados por estrelas com massa muito elevada e por supernovas nas regiões mais externas da NGC 1275. Outra estratégia, mais ao alcance da equipe brasileira, é realizar novas simulações, dessa vez combinando o efeito da precessão do núcleo galáctico ativo com a explosão das supernovas nas bordas da galáxia e verificar o que acontece.
De toda forma, já se avançou um pouco mais na compreensão da dinâmica de aglomerados de galáxias como o de Perseu e, por extensão, do aglomerado do qual faz parte a Via Láctea. Esses tijolos do Universo, que numa escala maior se organizam em superaglomerados, ainda guardam muitos segredos. Mas, por sorte, os astrônomos não desistem facilmente.
Fonte: FAPESP (Pesquisa)
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