Uma pesquisa realizada pela equipe científica da Universidade de Heidelberg, do IAC (Instituto de Astrofísica das Canárias) e da UNAM (Universidade Nacional Autônoma do México) permitiu-lhes resolver a discrepância de abundância, um enigma com mais de 80 anos, acerca da composição química do Universo.
© IAC (Nebulosa Crescente, NGC 6888)
Os pesquisadores descobriram que o efeito das variações de temperatura nas grandes nuvens de gás onde as estrelas nascem levou à subestimação da quantidade de elementos pesados no Universo.
Todas as estrelas nascem, vivem e morrem e, de certa forma, isto rege a existência da vida. Numa fase inicial, toda a matéria do Universo era constituída por hidrogênio e hélio, com uma pequena quantidade de lítio. Os restantes elementos, como o carbono e o oxigênio, essenciais para os seres vivos, foram formados posteriormente, através de diferentes processos relacionados com a evolução e com a morte das estrelas. É isto que está por detrás da conhecida frase "somos feitos de poeira das estrelas".
Entre as fases de morte estelar e o nascimento de novas estrelas, a matéria acumula-se em enormes nuvens de gás que são iluminadas pelas estrelas recém-nascidas. As nuvens mais próximas das estrelas são chamadas regiões HII; a Nebulosa de Órion é a mais conhecida. A luz que estas regiões emitem pode ser observada mesmo a partir das galáxias mais distantes, e são de importância fundamental para traçar a formação estelar e para determinar a composição química do Universo.
Porém, as diferentes formas de estudar as regiões HII levaram a resultados discrepantes nos últimos 80 anos. A descoberta da estrutura do átomo foi necessária para fazer grandes progressos na descoberta da estrutura e da composição do Universo utilizando a espectroscopia. Esta técnica, que permite analisar a composição química da matéria através da dispersão da luz, dá-nos informações sobre a proporção dos elementos químicos, as suas temperaturas, densidades, velocidades, etc. Esta dispersão da luz é composta por linhas e cada linha está associada a diferenças de energia que são únicas para um determinado elemento, de acordo com a composição e as condições físicas da fonte de luz.
No entanto, desde 1942, verificou-se que, para o mesmo átomo, as linhas brilhantes produzidas por colisões entre o átomo e o elétron circundante (linhas excitadas por colisão) produzem abundâncias que são cerca de metade dos valores obtidos a partir de linhas que são produzidas pela captura de elétrons (linhas de recombinação). Assim, a determinação de qual é o valor correto para as abundâncias dos elementos químicos numa nebulosa tem sido um quebra-cabeças para muitos astrônomos durante mais de oito décadas.
Durante este longo período de tempo, foram propostas várias hipóteses para explicar a discrepância. Uma das mais notáveis foi sugerida em 1967 por Manuel Peimbert, pesquisador da UNAM. De acordo com este astrofísico, o brilho das linhas excitadas por colisão depende fortemente da temperatura. Se esta tiver variações, as abundâncias químicas serão subestimadas. Pelo contrário, as linhas de recombinação não têm este problema, pelo que deverão dar os valores corretos.
Entretanto, há um problema adicional: Uma das principais dificuldades para quantificar a discrepância de abundância é que as linhas de recombinação dos elementos pesados são muito difíceis de observar, uma vez que são 10.000 vezes mais fracas do que as linhas excitadas por colisão produzidas pelo mesmo átomo. Este desafio motivou os astrônomos a utilizarem os maiores e mais avançados telescópios do mundo, entre eles o GTC (Gran Telescopio Canarias) no Observatório Roque de los Muchachos, em La Palma.
Após mais de 20 anos de observação e análise detalhada de um grande número de regiões HII, o grupo no IAC obteve um conjunto de dados para Via Láctea e para outras galáxias de qualidade sem precedentes, o que tornou este resultado possível. Graças à alta qualidade dos dados, a equipe conseguiu mostrar que as variações de temperatura estão, efetivamente, presentes, não em toda a nebulosa, mas concentradas nas zonas interiores mais altamente ionizadas. Foi descoberto que a temperatura calculada a partir das linhas proibidas do nitrogênio [NII] é representativa do valor médio para as zonas exteriores das nebulosas e pode, portanto, ser usada para calcular os valores corretos das abundâncias químicas.
Utilizando este novo cenário, foi possível mostrar que a grande maioria dos estudos anteriores baseados na análise das linhas brilhantes excitadas por colisão subestimaram as abundâncias dos elementos pesados. Além disso, as evidências sugerem que este efeito pode ser maior nos objetos menos evoluídos do Universo, como as galáxias distantes e jovens que estão agora sendo descobertas com o telescópio espacial James Webb.
O estudo propõe também uma série de relações que permitirão aos astrônomos fazer estimativas corretas dos elementos pesados sem a necessidade de observar as linhas de recombinação fracas. Isto permitirá corrigir os dados disponíveis e fazer análises satisfatórias de futuras observações, que irão sem dúvida mudar muitas das ideias sobre a composição química do Universo.
Um artigo foi publicado na revista Nature.
Fonte: Instituto de Astrofísica de Canarias
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