Estrela branca pode ter sido vermelha?
© NASA/ESA/G. Bacon (Sirius A e B)
Qualquer astrônomo sabe que Sirius é dupla e de cor branca. Contudo na antiguidade há registros feitos pelos babilônios, egípcios, gregos, romanos bem como em cartas celestes, onde aparece Sirius como uma estrela avermelhada. Numa tradução latina do poema grego de Aratus, Cícero (Marco Túlio Cícero, político, orador e filósofo, 106-43 a.C.) relata que Sirius “cintila como uma luz avermelhada”. Essa estrela de brilho esplêndido, a mais brilhante do céu, por isso mesmo a mais notada, tem sofrido em tempos históricos uma estranha transformação em sua luz.
Seriam essas observações uma falha nos achados arqueológicos de povos que registraram outros fenômenos com impressionante acuidade ou realmente Sirius mudou de cor? Tudo leva a crer que sim e para chegar a essa conclusão os pesquisadores alemães Wolfhard Schlosser e Werner Bergmann da Universidade de Ruhr, contaram com a sorte de descobrir nas crônicas de São Gregório de Tours, cidade francesa, datadas do ano 577, uma referência a Sirius que a descreveu de cor avermelhada. Acrescente-se que São Gregório não teve acesso aos trabalhos de observadores do céu na antiguidade e era considerado o maior sábio do seu tempo. Para explicar o fato, os pesquisadores sugeriram que a companheira de Sirius era uma estrela do tipo gigante vermelha. De lá para cá sofreu um processo de envelhecimento, queimou quase todo seu combustível nuclear, contraiu e tornou-se uma anã branca. Essa tese foi publicada na conceituada revista inglesa de ciência Nature.
Mas, para eles, esse processo em Sirius B tomaria no mínimo 100.000 anos e isso implicaria em uma revisão da teoria mais aceita pelos astrofísicos uma vez que a menos de 1.500 anos atrás Sirius ainda era avermelhada.
Um salto evolutivo em cerca de 1.500 anos? Em 577, Sirius B seria uma estrela do tipo gigante vermelha e seu brilho ofuscava Sirius A, uma estrela branca. Atualmente, Sirius B encolheu, tornou-se uma anã branca e o seu tom avermelhado desapareceu, enquanto Sirius A não mudou.
As estrelas anãs brancas estão divididas em dois tipos que obedecem uma evolução diferente segundo sua massa original. A primeira é para estrelas com massa entre 0,08 e 0,45 massas solares que após queimar o hidrogênio passa a queimar o hélio e num processo de expansão se transforma em uma gigante vermelha. Esta fase se estabiliza, inicia-se a seguir uma um período de contração e o produto final é uma anã branca com núcleo de hélio. O outro tipo são estrelas com massa inicial entre 0,8 a 10 massas solares. Após consumir o hidrogênio no centro passa a queimar o hélio e numa fase de expansão se transforma em uma gigante vermelha. Contudo, o processo de expansão continua transformando o hélio em carbono e oxigênio, produzindo-se assim uma supergigante vermelha com núcleo supermassivo, resultando numa anã branca. Nesta fase, a estrela não consegue reter as camadas externas que passam a se expandir, gerando uma nebulosa planetária. A anã branca produto deste tipo de estrela é composta de carbono e oxigênio, portanto diferente do primeiro tipo. Baseado neste tipo de evolução estelar mais aceito atualmente e que comprova-se com o que é observado, o que aconteceu com a companheira de Sirius se enquadra no primeiro tipo, uma vez que não é observado nenhum resíduo de gás envolvendo a estrela e qualquer sinal de uma nebulosa planetária. As últimas pesquisas apontam que Sirius B tem baixa temperatura, alta luminosidade e tem uma massa solar concentrada em um raio de somente 18.000 km ou 2,8 o raio da Terra. Sua densidade nesse caso é de 2 milhões de vezes da água. Algumas anãs brancas tem densidades centrais tão altas que uma colher de chá desse material pesaria algo em torno de 50 toneladas. A anã branca de Sirius é a mais próxima conhecida. Atualmente se conhecem mais de 25.000 anãs brancas e 10.000 nebulosas planetárias na Via Láctea.
As características de Sirius são bem conhecidas. Ela integra a constelação do Cão Maior com magnitude aparente de -1,5, a 8,6 anos-luz da Terra, 1.76 vezes maior que o Sol, 26 vezes mais luminosa e tem uma temperatura superficial de 11.000 K. Devido ao seu forte brilho, para alguns povos significava “a ardente” e para outros “a brilhante”. No Egito antigo, quando ocorria o nascer helíaco de Sirius, iniciava-se a cheia do rio Nilo, evento ansiosamente aguardado pelos habitantes pois era chegada a hora do plantio. Esta data servia também para ajustar o calendário egípcio de 365 dias. Conhecida como Sothis, marcava a criação do mundo e o inicio do ano em seu primeiro nascer helíaco.
No inicio de 1834, o astrônomo alemão Friederich Wilhelm Bessel (1784-1846), suspeitou que o movimento próprio de Sirius não era uniforme. Dez anos depois, em Königsberg, Alemanha, ele anunciou que as irregularidades observadas no movimento próprio de Sirius só poderia ser explicado pela presença de uma astro perturbador. Constatou o mesmo em Procyon por apresentar também uma flutuação no movimento próprio. O período da companheira de Procyon mais tarde confirmado por Anwers é de 40,6 anos. A comprovação da companheira de Sirius veio somente em 1862 através do óptico e matemático americano Alvan G. Clark (1832-1897) quando testava com seu filho uma luneta com objetiva de 47 cm por ele construída. Entretanto, foi o filho que observou: “Pai, Sirius tem uma companheira”. Bessel inaugurou o primeiro capítulo do que poderíamos chamar de “astronomia do invisível” pois foi prevista em razão do efeito gravitacional no movimento próprio da estrela principal. Nesse sentido é preciso considerar também a descoberta em 1969 de um companheiro invisível na estrela Aitken 14 feita pelo astrônomo brasileiro Ronaldo R. de Freitas Mourão (1935-2014). Tal descoberta foi confirmada pelo astrônomo francês P. Baize e pelo astrônomo austríaco J. Hoppmann que determinou sua órbita provisória. A descoberta de Bessel inaugurou uma nova categoria de estrelas: as anãs brancas.
As duas estrelas se atraem mutuamente ao redor de um centro de gravidade comum, com período de 50 anos. Sirius B é dez magnitudes mais fraca que Sirius A. Sua observação só é possível com grandes instrumentos ou aberturas menores munidas com câmaras CCD. Contudo isso não basta e é necessário conhecer a época em que Sirius B se encontra mais afastada de Sirius A (apoastro) em razão do brilho intenso dessa estrela. Atualmente a observação de Sirius B é muito difícil. A história envolvendo Sirius é intrigante, e mostra que os mistérios sobrevivem tanto na Terra como no céu.
Este texto foi abordado pelo astrônomo brasileiro Nelson Alberto Soares Travnik, diretor do Observatório Astronômico de Piracicaba (SP), e membro titular da Sociedade Astronômica da França.
Fonte: Scientific American Brasil