Quando naves espaciais como as da empresa norte-americana SpaceX começarem a levar turistas para passeios na órbita da Terra, será necessário ficar mais atento e desligar alguns aparelhos ao passar sobre a América do Sul e o sul do oceano Atlântico.
© ESA (anomalia magnética na Terra)
Na imagem o azul mais escuro corresponde a área de menor intensidade do campo magnético.
Sobre essa região encontra-se uma área com campo magnético mais fraco, a Anomalia Magnética do Atlântico Sul (Amas), com menor poder de filtrar a radiação solar e as partículas do espaço. De acordo com estudos recentes, a Amas não para de se mover, podendo desaparecer de um lugar e reaparecer em outro.
O campo magnético é o resultado do movimento do ferro líquido que envolve o núcleo interno do planeta, formado de ferro sólido. Ao girar a uma velocidade maior que a superfície, o ferro líquido produz um campo magnético com dois polos magnéticos opostos, próximos aos polos Norte e Sul geográficos. Sua intensidade na superfície do planeta é menor que a de um ímã de prender papel na porta da geladeira e diminui ainda mais no topo da atmosfera. Mesmo assim, funciona como um escudo de partículas cósmicas.
Uma peculiaridade do campo magnético são as irregularidades ou anomalias, como a Amas. Dados históricos dos navegantes, que registravam a direção do campo magnético com bússolas, indicam que a Amas já existia na África do Sul no século XVI, com uma área bem menor, menos de um décimo da atual. Ela cruzou o oceano Atlântico a uma velocidade de cerca de 20 quilômetros por ano, aumentou em tamanho e diminuiu em intensidade. No entanto, pesquisadores brasileiros e franceses mostraram que o comportamento da Amas é diferente do que se imaginava.
“A Amas não se move em linha reta e velocidade constante quando vaga rumo a oeste, como previsto em modelos anteriores”, conta o geofísico Ricardo Trindade, da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores de um estudo publicado na Earth, Planets and Space em fevereiro. “Há cerca de 80 anos, a Amas se dirigiu rapidamente para o sul e décadas depois foi para leste, antes de retomar o movimento para oeste.”
O trabalho, baseado em dados de observatórios terrestres e de satélites, analisou a trajetória da Amas de 1840 a 2020, quando já cobria parte da América do Sul. Os pesquisadores brasileiros, trabalhando com colegas da Universidade de Nantes, na França, detectaram as variações de trajetória ao considerar o enfraquecimento do campo magnético da Terra, hoje 10% menos intenso do que quando foi medido com precisão pela primeira vez, em 1839, pelo matemático e físico alemão Carl Friedrich Gauss (1777-1855). Segundo Trindade, medir a Amas sem levar em consideração essa queda geral do campo magnético distorce as medidas, “como a profundidade do mar parece ser maior se for medida apenas a partir da maré alta”.
A Amas, como todo o campo magnético da Terra, está hoje em sua fase mais fraca dos últimos cinco séculos. Teoricamente, a essa redução se seguiria uma inversão total dos polos magnéticos da Terra em centenas ou alguns milhares de anos, o que poderia provocar uma catástrofe climática e ambiental, como deve ter ocorrido há 780 mil anos. No entanto, analisando o registro magnético de estalagmites da caverna do Pau d’Alho, no município de Rosário do Oeste, em Mato Grosso, a equipe franco-brasileira mostrou que a Amas já passou por períodos de intensidade mínima em torno dos anos 850 e 1450, sem que os polos se invertessem. Depois disso, teria desaparecido sobre a América Latina e uma nova anomalia teria nascido próxima à África. Essa transição estaria acontecendo nesse momento: uma nova e pequena Amas já desponta no oceano Atlântico perto da África do Sul. Se a previsão estiver correta, a Amas atual, que cobre o Brasil, deve desaparecer, em data incerta, e o campo magnético da Terra deve ficar mais intenso, adiando a inversão dos polos.
“As transformações abruptas na Amas observadas no Brasil, com queda na intensidade magnética, aconteceram cerca de 200 anos antes na África”, diz o geofísico Gelvam Hartmann, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos autores de um artigo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences em dezembro de 2018. “Esse é o tempo, em média, que a Amas leva para se deslocar da África até a América do Sul.” A equipe chegou a essa conclusão comparando os dados da caverna com registros da África do Sul obtidos por outros grupos de pesquisa.
Durante a formação das estalagmites – rochas que crescem do chão em direção ao teto, com acúmulo principalmente de calcário –, partículas de argila do solo, com minerais ferrosos como a magnetita, são carregadas pela chuva para dentro das cavernas. O calcário solidifica e a magnetita, como a agulha de uma bússola, se alinha ao campo magnético da Terra. Segundo Hartmann, as formações rochosas do interior das cavernas são ótimas para esse tipo de estudo por se formarem “em um ambiente livre de perturbações mecânicas que possam influenciar no registro magnético pelas magnetitas”.
A anomalia nascente perto da África surgiu nos últimos 15 anos, longe do centro da Amas, atualmente sobre o Paraguai. “Essa região está se expandindo e começando uma nova fase da anomalia”, explica o geofísico Filipe Terra-Nova, da USP. A conclusão reforça a hipótese de que as Amas se sucedem e, portanto, a reversão de polos estaria distante.
Um estudo internacional publicado na revista Science em fevereiro ilustra o impacto da movimentação dos polos magnéticos da Terra. Há cerca de 42 mil anos, após uma inversão, os polos não se estabilizaram e voltaram para a posição original. “O campo magnético quase desapareceu, deixando o planeta exposto a todo tipo de partículas de alta energia do espaço”, disse o geólogo Chris Turney, da University of New South Wales, em Sydney, Austrália. “Certamente, foi um período assustador, que lembrava o final dos tempos.” As intensas mudanças climáticas e ambientais podem até ter contribuído para a extinção de um tipo de hominídeo, os neandertais.
O telescópio espacial Hubble é desligado propositadamente sempre que passa pela Amas. As paredes da Estação Espacial Internacional (EEI) são feitas de materiais que reduzem a exposição dos astronautas aos raios cósmicos, principalmente quando passam por essa região.
“Os aviões comerciais, que voam a cerca de 12 km de altitude, podem sofrer impacto dos raios cósmicos”, comenta o físico Maurício Tizziani Pazianotto, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Em 2008, um Airbus A3300 que ia de Singapura para a Austrália baixou o nariz duas vezes na mesma viagem sem nenhuma ordem dos pilotos. Alguns passageiros se feriram. “A causa do acidente não foi descoberta, mas um dos fatores que não foi descartado foi a radiação cósmica”, diz.
Em um estudo publicado na revista IEEE Transactions on Aerospace and Electronic Systems em abril de 2020, ele mostrou que a probabilidade de interferência dos raios cósmicos varia de acordo com o local e a posição do aparelho no avião. Segundo ele, em alguns casos bastaria mudar a posição do equipamento – horizontal ou vertical – para reduzir a probabilidade de falhas.
Fontes: Pesquisa FAPESP e ESA