Não faltam mitos e lendas sobre a Via Láctea, o agrupamento de poeira, gás e algo como 400 bilhões de estrelas mantidas relativamente próximas pela força gravitacional no qual se insere o Sistema Solar.
Os antigos egípcios acreditavam que a galáxia era uma bifurcação do Nilo, um rio no firmamento. Para muitos povos, a água era seu elemento central e as estrelas se encontravam fixadas no céu. Alguns índios brasileiros a chamavam de Tapirapé, o caminho das antas. Observado a olho nu desde tempos imemoriais em dias de céu limpo, o aspecto aparentemente leitoso da formação estelar serviu de inspiração para seu nome. O próprio termo galáxia – em grego, gala quer dizer “leite” – deriva dessa analogia. Ideias míticas ou fantasiosas sobre a Via Láctea, como as citadas acima, são postas à prova e derrubadas desde que Galileu Galilei apontou seu telescópio para a abóbada celeste há quatro séculos. Hoje a quantidade de informação científica acumulada sobre a galáxia é enorme, mas, segundo alguns astrofísicos, é enganosa a sensação de que a conhecemos em detalhes.
Dois trabalhos recentes e independentes de pesquisadores brasileiros questionam a visão mais difundida sobre um dos traços mais marcantes da nossa galáxia, os braços da Via Láctea. No final de novembro, Augusto Damineli e Jacques Lépine, ambos astrofísicos da Universidade de São Paulo (USP), passaram quatro dias debatendo as características da estrutura espiral da Via Láctea ao lado de outros 60 cientistas da Europa, Estados Unidos, Japão e América Latina num hotel à beira-mar no balneário chileno de Bahia Inglesa, na região desértica do Atacama. A ideia do workshop era confrontar as observações feitas por vários grupos de pesquisa com as teorias vigentes nessa área. Novos dados divulgados por Damineli sugerem que algumas regiões estelares associadas aos braços da galáxia estão até 50% mais próximas da Terra do que medições anteriores apontavam. Talvez a extensão da própria Via Láctea seja menor do que se pensa. Já o estudo de Lépine indica que alguns trechos dos braços podem ser retos em vez de espiralados e que pode haver um pequeno braço periférico que exibe uma inusitada curvatura voltada para fora da galáxia. “O que determina a forma dos braços é a órbita das estrelas em torno do centro galáctico”, diz Lépine, autor do livro de divulgação A Via Láctea, nossa ilha no universo (Edusp). “É falsa a ideia de que os braços de nossa galáxia sejam espirais quase perfeitas.” A Via Láctea seria então meio quadradona?
Tecnicamente, a Via Láctea é descrita como uma galáxia espiral barrada. Além de ser circundada por um halo com baixa densidade de matéria, é formada por um grande disco achatado, do qual os braços fazem parte, e por um bojo esférico de formato parecido ao de uma bola de futebol americano em sua região central. Apresenta ainda uma concentração de estrelas que atravessa o bojo e origina uma estrutura de contornos similares a uma barra. Nesse tipo de galáxia, os braços “nascem” geralmente nas pontas da barra. As estrelas mais velhas, de cor entre o amarelo e o vermelho, se concentram na região central. As de maior massa e mais novas, em tons azulados, delineiam os braços. Bem no coração da galáxia, no centro do bojo, há evidência de que se esconde um buraco negro, um tipo de objeto celeste misterioso que suga toda a matéria à sua volta e do qual não escapa nem a luz. Nem todas as partes da galáxia se formaram de uma vez. As estrelas mais antigas da Via Láctea têm mais de 13 bilhões de anos, mas os braços devem ter pouco mais da metade dessa idade.
Embora importantes pontos de consenso tenham sido estabelecidos nas últimas décadas, não faltam divergências de interpretação e lacunas de dados sobre algumas características centrais da Via Láctea. “Nossa visão esquemática da galáxia não mudou muito nos últimos 20 anos, mas sim a compreensão de seus detalhes e mecanismos”, explica o astrofísico português André Moitinho, da Universidade de Lisboa, outro participante do encontro ocorrido no deserto chileno. A massa total e o tamanho da Via Láctea, parâmetros que pareciam razoavelmente bem determinados há tempos, ainda suscitam questionamentos periódicos. Não se sabe ao certo a distância do Sol e de outras estrelas em relação do centro da galáxia, tampouco a velocidade de rotação da matéria em cada ponto do raio galáctico.
De todas as dúvidas, talvez o tema que gere mais debates e revisões seja mesmo a estrutura espiral da Via Láctea. Afinal, a galáxia tem quatro ou dois dos braços principais? Como eles seriam e onde exatamente estariam? “Achei que estaríamos caminhando para um consenso sobre essa questão depois de tantas décadas de estudos”, diz Damineli. “Mas os resultados dos diferentes métodos de observação usados para analisar os braços nem sempre são convergentes.”
A técnica mais segura para determinar a distância de um objeto celeste da Terra é baseada no cálculo do ângulo da paralaxe trigonométrica, procedimento usado para esta finalidade há quase dois séculos. O astrônomo mede a variação da posição aparente de uma estrela contra um fundo fixo em dois momentos distintos de observação, em geral pontos opostos da órbita da Terra. A paralaxe é esse suposto deslocamento da estrela e é dada por um ângulo, variável-chave utilizada numa triangulação que permite descobrir quão longe o objeto está de nosso planeta. O método, no entanto, tem uma limitação: não serve para determinar a localização de objetos muito longínquos ou de brilho excessivamente tênue. No caso da Via Láctea, as estrelas que estão do lado completamente oposto ao do Sol, no outro canto da galáxia, não podem, em geral, ser estudadas por meio do cálculo da paralaxe.
Em seu trabalho, Damineli e seus colaboradores, entre os quais se destacou o então aluno de doutorado Alessandro Moisés, usaram uma variante moderna desse método. Analisaram uma enorme série de espectros e imagens obtidas ao longo de 14 anos, no comprimento de onda do infravermelho próximo, por três telescópios instalados no Chile (Blanco, Gemini e Soar) e ainda se utilizaram de registros no infravermelho médio fornecidos pelo satélite Spitzer, da NASA, a agência espacial americana. Com todos esses dados, os pesquisadores calcularam a distância de 35 regiões HII da galáxia, a maioria delas de gigantescas dimensões.
© NASA (região HII)
Formada por nuvens de gás (hidrogênio) ionizado, esse tipo de região é caracterizada por intensa formação de estrelas de grande massa. “As regiões HII são consideradas boas indicadoras de onde devem passar os braços da Via Láctea”, diz Damineli. O estudo do grupo da USP foi publicado on-line no dia 25 de novembro passado na edição eletrônica da revista científica britânica Monthly Notices of the Royal Astronomical Society e mostrou que boa parte desses berçários estelares se encontra até 50% mais próxima da Terra do que sugerem trabalhos feitos com o emprego do chamado método cinemático. Por essa segunda técnica, também clássica, os astrofísicos inferem a distância do gás que envolve as estrelas a partir do cálculo de sua velocidade de aproximação ou de afastamento do Sistema Solar.
De acordo com o artigo de Damineli, 14 das 35 HII analisadas estão mais perto do que o sugerido por estudos feitos pelo método cinemático, enquanto duas se encontram mais distantes. Para as demais regiões HII, os resultados foram inconclusivos (10 casos) ou bateram com estudos anteriores (nove casos). Se os dados do estudo estiverem certos, o diâmetro da Via Láctea – não confundir o tamanho com a massa da galáxia – pode ser menor do que os difundidos 100 mil anos-luz. “Conhecer as distâncias dos objetos é fundamental para compreender melhor a nossa galáxia e todo o Universo”, afirma Damineli. Um ano-luz equivale à distância percorrida pela luz em um ano, cerca de 9,5 trilhões de quilômetros.
O estudo de Lépine usou o método cinemático para construir um mapa de como seriam os braços da galáxia. Além de utilizar uma técnica distinta, o astrofísico optou por analisar um tipo diferente de indicador da estrutura espiral da Via Láctea. Um grupo de radioastrônomos chilenos obteve a velocidade de 870 fontes de emissão do gás monossulfeto de carbono, que haviam sido identificadas a partir de medições no infravermelho realizadas pelo satélite espacial Iras. Com as velocidades, Lépine calculou a distância dos objetos. O monossulfeto de carbono é uma molécula associada à presença de regiões HII de pequeno porte, ou seja, a zonas em que há grande densidade de estrelas jovens. “Nenhum outro estudo sobre as clássicas regiões HII empregou mais objetos para desenhar os braços da galáxia do que o nosso”, afirma Lépine, cujo artigo, escrito em parceria com colegas brasileiros e um russo, já foi aceito para publicação também na Monthly Notices of the Royal Astronomical Society.
Os contornos que emergem do mapeamento de Lépine desafiam a visão mais tradicional da Via Láctea. De acordo com o estudo, a galáxia pode ter apenas dois grandes braços em sua porção central, mas, sem dúvida, quatro na vizinhança solar. O detalhe mais surpreendente é que, sempre segundo o trabalho, os braços não formam espirais logarítmicas perfeitas. Alguns de seus trechos exibiriam ângulos retos. Dessa forma, a Via Láctea poderia ter braços que geram uma figura com aparência de losango. “A gente vê com certa frequência esse tipo de estrutura em outras galáxias”, comenta Lépine, um dos principais pesquisadores de um projeto temático da FAPESP sobre a formação e evolução de estruturas no Universo. Outro achado do estudo é a aparente presença na periferia da galáxia de um desconhecido e pequeno braço, denominado pelo brasileiro de Sagitário-Cefeu por estar situado perto dessas constelações. Com curvatura voltada para fora da Via Láctea, o braço estaria a uma distância aproximada de 33 mil anos-luz do centro da galáxia.
Estudar a Via Láctea impõe uma dificuldade única que, por definição, nenhuma outra galáxia jamais apresentará aos astrofísicos. Estamos dentro do objeto a ser observado e, para tornar as coisas ainda mais complicadas, num ângulo nada favorável para visualização. O Sol está apenas cinco graus acima do plano de toda a matéria que compõe a galáxia. “Como não podemos viajar para uma galáxia próxima, dar meia-volta e tirar uma foto da Via Láctea, precisamos usar outros métodos para construir uma ‘imagem’ dela”, afirma Mark Reid, do Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, de Cambridge, Estados Unidos, um dos maiores estudiosos da galáxia. “Toda vez que medimos a distância de uma estrela jovem podemos colocar um ponto no mapa da Via Láctea.” Os astrofísicos acreditam que a feição dos braços seja ditada essencialmente pela presença de grandes concentrações de gás e estrelas jovens em certas partes da galáxia.
Há ainda outros empecilhos que as técnicas observacionais tentam contornar para melhor entender a natureza da Via Láctea. Em nossa galáxia, como em qualquer outra, apenas uma parte de sua matéria total pode ser vista na faixa de luz visível do espectro eletromagnético. Frequentemente é preciso recorrer a outros comprimentos de onda, como os raios X, ultravioleta ou infravermelho, para estudar certos objetos. A existência de poeira em meio aos gases que compõem o espaço interestelar também não facilita em nada essa tarefa. Seus grãos absorvem e espalham as radiações emitidas pelas estrelas em diversos comprimentos de onda, inclusive no da luz visível. Na prática, o fenômeno da extinção, como é conhecido o efeito causado por essas finas partículas, altera o brilho de muitos objetos e inviabiliza observações em certos cantos e distâncias da galáxia. No infravermelho, comprimento de onda usado tanto nos estudos de Damineli e Lépine, o efeito da extinção é menor.
Embora os estudos dos dois astrofísicos da USP não apontem para uma mesma configuração dos braços da Via Láctea, ambos concordam num ponto: seus colegas do telescópio Spitzer deveriam corrigir a ilustração mais difundida sobre a galáxia. Trata-se de um belo mapa, divulgado no início de 2008, que mostra a Via Láctea com apenas dois braços espirais principais, Escudo-Centauro e Perseu. Outros dois braços, Norma e Carina-Sagitário, que se encontram entre os braços maiores, foram rebaixados à condição de secundários. Surgem mais tênues, com traços enfraquecidos. “Eles praticamente sumiram com o braço de Carina, a região mais visível da galáxia”, reclama Damineli. Aparecem ainda na figura um minibraço recentemente descoberto, quase reto e que corre em paralelo à barra central da galáxia, e também o pequeno braço (ramo) de Órion, onde está o Sol.
© NASA/JPL-Caltech (braços da Via Láctea em 2008)
Na versão anterior do mapa, de 2005, também disponibilizada pelo Spitzer, os quatro braços principais tinham o mesmo status.
© NASA/JPL-Caltech (braços da Via Láctea em 2005)
A crítica de vários astrofísicos ao mapa, no qual a simetria da estrutura é perfeita demais para ser real, é quase sempre a mesma. “O desenho reflete uma visão mais artística do que científica e não usou os melhores indicadores dos braços da galáxia”, afirma a francesa Delphine Russeil, do Observatório de Marselha, outra especialista no tema. “Se analisarmos a presença de objetos jovens na Via Láctea, todos concordam que há quatro braços, ainda que não saibamos direito como as diferentes partes dessas estruturas se interconectam se vistas dos hemisférios Sul e Norte.”
O astrofísico americano Robert Benjamin, da Universidade de Wisconsin, um dos envolvidos na confecção do polêmico mapa, explica como o desenho foi concebido. “É extraordinariamente difícil encapsular numa única imagem os resultados de mais de 50 anos de pesquisas, feitas por nós e por outros grupos no mundo”, diz Benjamin. “Algumas populações de estrelas parecem indicar que há dois braços mais fortes e outros mais fracos. O mapa foi a nossa melhor tentativa de refletir esses dados.” Aprimorar periodicamente a ilustração é um objetivo do time do Spitzer, e uma nova versão da ilustração deve ser produzida até o fim deste ano.
Não são só os braços da Via Láctea que provocam polêmica. Recentemente, sua massa e a posição de segunda maior galáxia de sua vizinhança cósmica foram postos em xeque. Até uns poucos anos, todas as evidências indicavam que Andrômeda tinha o dobro da massa da Via Láctea e era a maior das mais de 45 galáxias que formam o chamado grupo local. “Parece que a Via Láctea e Andrômeda têm mais ou menos a mesma massa total”, afirma o astrofísico Mark Reid, do Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics. “Essa é a interpretação mais simples e direta de nossos dados”. No início de 2009, Reid divulgou medições consideradas bastante precisas que aumentaram em cerca de 15% a velocidade de rotação atribuída à Via Láctea. O estudo indicava que a galáxia girava a 966 mil quilômetros por hora em vez de 805 mil quilômetros por hora, conforme se acreditava.
Se o cálculo de Reid estiver correto, e quase ninguém duvida disso, uma conclusão indireta do trabalho é que a galáxia precisa ter o dobro de sua massa total (matéria comum mais a misteriosa matéria escura) para girar a essa velocidade. A massa extra pode significar uma má notícia no longo prazo: nossa galáxia poderia se chocar com Andrômeda daqui a menos tempo do que os previstos 5 bilhões de anos.
Outra descoberta recente, de novembro de 2010, pode, a exemplo da questão dos braços da Via Láctea, render muita discussão. Dados do satélite Fermi sugerem que existem duas gigantescas bolhas formadas por raios gama acima e abaixo do plano da galáxia.
© Fermi (bolhas de raios gama na galáxia)
As surpreendentes bolhas seriam produzidas pela suposta atividade do buraco negro localizado no núcleo galáctico. Mais debates e polêmicas à vista, pelo jeito.
Fonte: FAPESP (Pesquisa)