O último estágio evolutivo da vida de aproximadamente 98% das estrelas da Via Láctea é como uma anã branca, um corpo celeste degenerado, de brilho tênue e porte encolhido, ainda que extremamente denso.
© Observatório Gemini (anã branca)
Depois de perderem as camadas de sua atmosfera e consumirem todo o hidrogênio e o hélio em seu núcleo, essas estrelas velhas e decadentes comprimem sua massa em uma área 1 milhão de vezes menor do que a sua dimensão original. O Sol, por exemplo, deve virar um objeto moribundo com essas características daqui a 6 bilhões de anos. Ao menos 15 mil anãs brancas já foram descobertas em nossa galáxia. Não chega a ser uma grande novidade identificar no céu uma nova estrela na fase final de sua existência. Mas o astrofísico Kepler de Souza Oliveira Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), conseguiu uma pequena proeza ao encontrar, num curto espaço de tempo, quase mil estrelas agonizantes de um tipo bastante raro, as chamadas anãs brancas magnéticas. “Descobrimos 900 dessas estrelas no ano passado”, diz o pesquisador gaúcho. “Até então conhecíamos 150 anãs brancas magnéticas.” O achado já foi divulgado num congresso científico, mas ainda não ganhou as páginas das revistas especializadas.
Como regra geral, as anãs brancas não exibem campo magnético. Por estarem próximas do fim, perderam quase todos os predicados da juventude, inclusive o magnetismo. No entanto, um pequeno número delas mantém, misteriosamente, essa característica. E não se trata de algo residual. A força do magnetismo numa anã branca desse tipo pode ser milhões ou até bilhões de vezes maior do que a do Sol.
© SDO (linhas do campo magnético do Sol)
O campo magnético médio do Sol é da ordem de 1 Gauss, o dobro do da Terra, com picos de alguns milhares de Gauss nas áreas em que se formam manchas. Apenas as estrelas de nêutrons apresentam campo de maior magnitude do que essa variante de anã branca. “A gênese do campo é um mistério desde a descoberta da primeira anã branca magnética nos anos 1970”, diz o astrofísico Dayal Wickramasinghe, da Universidade Nacional da Austrália, um dos maiores especialistas nesse tipo de objeto celeste. “Ele pode ser um resquício fóssil das fases anteriores da estrela, pode ter sido gerado durante o processo de evolução estelar ou estar sendo produzido atualmente por um dínamo ativo.” Em astrofísica, a teoria do dínamo tenta explicar como a Terra e as estrelas são capazes de gerar e manter atividade magnética por longos períodos.
Kepler descobriu o inusitado grupo de estrelas ao deparar com um problema, que o desviou do objetivo original de seu estudo mas o conduziu às 900 anãs brancas magnéticas. Quando começou a estudar dados do levantamento internacional Sloan Digital Sky Survey (SDSS) referentes a 50 mil estrelas candidatas a serem classificadas como anãs brancas, percebeu algo de estranho. Feita automaticamente por um software muito empregado pelos astrofísicos, a análise das chamadas linhas do espectro de emissão dessas estrelas – ou seja, de gráficos que mostram os fótons liberados pelos elementos químicos presentes nesses objetos – gerou um resultado fora do esperado. O programa apontava erros de informação em 40% da amostra de estrelas do SDSS, um índice extremamente elevado. O pesquisador da UFRGS desconfiou do resultado e resolveu verificar, com o seu próprio olho, a qualidade dos dados. Encontrou um padrão de linhas de emissão completamente anômalo em algumas estrelas, um desvio que deveria ser causado por um tipo especial de anã branca, as magnéticas. “Se eu não tivesse feito essa checagem manual, o software nunca teria descoberto essas estrelas”, diz Kepler, que contou com a ajuda de uma aluna de iniciação científica da UFRGS, Ingrid Pelisoli, para dar cabo da tarefa.
As anãs brancas magnéticas despertaram o interesse do astrofísico brasileiro porque são estrelas cuja massa é difícil de dimensionar. “Seu campo magnético é tão forte que distorce os átomos e impede a realização desse tipo de medição com precisão”, afirma Kepler. Determinar com precisão a massa de anãs brancas era justamente o objetivo inicial do pesquisador quando teve acesso aos dados do SDSS. Desde 2007 Kepler tenta encontrar anãs brancas que estejam o mais próximo possível do chamado limite de Chandrasekhar, uma ideia proposta nos anos 1930. De acordo com essa lei, cuja formulação deu o Nobel de Física de 1983 ao famoso teórico indiano Subrahmanyan Chandrasekhar (1910-1995), uma anã branca só se mantém estável se sua massa for, no máximo, 40% maior do que a do Sol. Se tiver mais do que 1,4 massa solar, ela sofre um colapso gravitacional e se transforma numa estrela de nêutrons ou buraco negro.
Não faltam questões a serem elucidadas sobre esse tipo especial de anã branca. “Esses objetos nos dão uma oportunidade única de entender a vida das estrelas magnéticas”, diz o astrofísico Baybars Külebi, da Universidade de Heidelberg, Alemanha, que vai colaborar com Kepler nos estudos sobre esses misteriosos objetos celestes. “Isso é importante, visto que o magnetismo não é muito bem explicado pela teoria da evolução estelar.” Apesar dos empecilhos, o pesquisador brasileiro ainda não desistiu de tentar determinar a massa das anãs brancas magnéticas. “Vamos testar outro método que, em vez do espectro de emissão, usa a cor da estrela para medir esse parâmetro”, afirma Kepler.
Fonte: FAPESP (Pesquisa)
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